A quem interessa um "micro juiz"?




A Crise da Magistratura e o Papel da Justiça na Sociedade Pós-Moderna

Justiça na "Nau dos Insensatos" de Sebastian Brant

Sebastian Brant, em "A Nau dos Insensatos", retrata a justiça como um visionário, tendo na cabeça um gorro com orelhas de burro, os olhos vendados por uma faixa, munida de uma espada que brande às cegas e de uma balança não mais legível. Segundo François Ost, tal imagem ilustra uma narrativa satírica sobre os litigantes que se perdem em chicanas vãs e arrastam a Justiça a querelas ociosas.

Com o passar do tempo, os olhos vendados passaram a ser associados à imparcialidade do juiz, similar ao "olhar interior" dos adivinhos antigos, que estariam próximos da verdade por estarem apartados do mundo.

A Relevância do Papel do Juiz na Sociedade Pós-Moderna

Múltiplas interpretações dessa obra nos permitem concluir que a mensagem de Brant continua extremamente atual. A Justiça, frequentemente, se perde em meio a causas de conteúdo jurídico irrelevante, devido à intensa judicialização das relações sociais.

A explosão de demandas judiciais não é um fenômeno puramente jurídico, mas sim social. Antoine Garapon observa que, cada vez mais, a sociedade procura no juiz não só o jurista ou árbitro, mas também o conciliador, o apaziguador das relações sociais, e até mesmo o promotor de políticas públicas, como no caso da prevenção da delinquência.

Exemplos da Intensa Judicialização das Relações Sociais

Somos chamados a decidir se o Estado deve ou não garantir a um recém-nascido vaga em UTI particular, quando não há leitos hospitalares no SUS. Também somos convocados a dizer se representa dano moral, além do mero incômodo, o fato de um vizinho fazer "cara feia" para o outro ao passar em frente à sua casa. Tudo se judicializa, destacando ainda mais a importância da figura do juiz na sociedade pós-moderna.

A Crise de Confiança no Judiciário

Apesar do papel central do juiz, a toga tem sido alvo de desconfiança. As notícias divulgadas na mídia frequentemente alvejam a figura do magistrado, gerando uma percepção de crise institucional no Poder Judiciário. A sociedade, muitas vezes, culpa os juízes pela ineficiência do sistema, pelos processos demorados e pelas mazelas que afligem a Justiça.

O "nariz torcido" para os "homens de capa preta" se tornou uma expressão comum. De repente, os juízes não são mais vistos como dignos da confiança social, mas como criminosos, violadores da lei e inimigos da sociedade. Esse tipo de julgamento generalizado é problemático e, como destaca Yves Lemoine em Le complot des juges, o que se busca é uma magistratura dócil e dependente.

O Paradoxo da Necessidade e Desvalorização dos Juízes

Chega-se, então, à conclusão paradoxal de que, apesar de precisar desesperadamente dos juízes para resolver seus conflitos, a sociedade busca diminuir o valor da figura do magistrado. Um "micro juiz" seria um órgão jurisdicional diminuído em suas prerrogativas, temeroso e distante do caso concreto.

O resultado é uma justiça tímida, que se refugia no dogmatismo da jurisprudência majoritária, temendo destoar da maioria e receando perseguições ou rótulos. Um magistrado que aplica a lei cegamente, sem a necessária interpretação hermenêutica, não atende plenamente à Justiça.

A Crise Institucional e o Futuro da Magistratura

De fato, projetam-se sombras sobre o futuro da magistratura. Que tipo de juiz teremos daqui a alguns anos? Serão eles capazes de enfrentar os desafios de uma sociedade que perdeu a capacidade de resolver seus próprios conflitos?

Além disso, os juízes são muitas vezes impedidos de pleitear melhorias para sua estrutura de trabalho, como investimentos em capacitação, qualificação dos servidores ou uma simples atualização monetária dos salários corroídos pela inflação.

A Resistência e Esperança no Futuro da Justiça

Apesar das adversidades, é importante destacar que a magistratura brasileira não sucumbirá a essa "nau dos insensatos". Há juízes que, conscientes da importância de sua posição, continuam resistindo às pressões externas e internas. Eles estão comprometidos com a missão de garantir os direitos fundamentais de cidadania, como a saúde e a alimentação, mantendo viva a esperança da sociedade.

Ler mais: 


Sebastian Brant, "Le Nef des Fous": Este livro pode ser acessado na Wikipédia em francês, que fornece informações detalhadas sobre a obra. 

Wikipedia francês


François Ost, "Contar a Lei": Disponível na Amazon Brasil


Antoine Garapon, "O Guardador de Promessas": Também disponível na Amazon Brasil


Lewis Carroll, "Aventuras de Alice no País das Maravilhas": Disponível na  Amazon Brasil

Yves Lemoine, "Le Complot des Juges": Informações sobre esta obra podem ser encontradas na Wikipédia em francês. Wikipedia francês

 

Comentários

  1. Voltou a ativa. O blog já estava com teias de aranha. Muito bom o texto, como sempre. Parabéns. Ricardo Schwertner

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  2. Que bom que voltou. Costumo dizer que a justiça não existe aqui, neste mundo de meros mortais. Então nos submetemos a uma justiça caótica e desequilibrada que funciona apenas para aquilo que lhe convém... Um grande abraço e bem-vinda de volta.

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  3. Técnico,forte e inteligente na dose exata.Parabéns pela proposta diferenciada na blogosfera.Beijo de leitor.:-BYJOTAN.

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