"Apresentem-se no Tribunal!"
Expectativa no ar. Sabíamos que a qualquer momento a porta ruidosa iria se abrir. Em nosso quarto, eu e minha irmã mais velha. Olhar aflito, esperando pelo chamado. Minha mãe já tinha prenunciado: "Quando o pai de vocês chegar, vai ficar sabendo de tudo!". Ao final da tarde, o pai entrava em casa, ouvia as "acusações" e logo nos chamava: "Apresentem-se no tribunal!".
Assim me foi apresentado o sistema judicial. Dessa forma, assimilei a "função paterna", enquanto autoridade simbólica da "lei privada. Desde cedo compreendi que a cada ato em desconformidade com esta lei correspondia a uma sanção. Todavia, meu pai, em seus julgamentos, sempre nos garantia o direito à ampla defesa. Ouvia-nos atentamente. Ele no seu lugar de costume na mesa, e nós, do lado de cá, tentando justificar uma briga entre irmãs. Inequívoca a violação da "lei", a sentença sobrevinha fundamentada: "Irmãs não devem brigar, portanto, vão receber um castigo!". Então, ficávamos abraçadas, ambas de joelhos, até que o tempo da pena fosse cumprido e ele nos liberasse para voltar a brincar.
Já adolescente, acompanhava meu pai em seus júris. Gostava de presenciar as defesas inflamadas, repletas de argumentos de retórica. Era o advogado a estrela do cenário. Então escolhi o Direito, porém, me desviando um pouco da profissão do meu pai.
Não posso dizer que desde sempre tive a pretensão à magistratura, o que somente surgiu depois de cinco anos de advocacia. Contudo, abracei meu cargo com paixão e um pouco de estranhamento.
Estranhei o peso da toga. Não tinha consciência que ela passaria a me acompanhar, onde quer que fosse. Ao alistar-me nas fileiras da magistratura, não sabia, mas perdi o prenome e sobrenome. Dali em diante seria conhecida apenas como "a juíza" e ponto final. Isso tudo numa dimensão ainda maior quando se trata de uma comarca pequena, onde somente há um juiz.
Não constam dos editais de concurso, entretanto exige-se do juiz uma espécie de sacerdócio. Casamos com a profissão e vivemos para ela.
Tentamos incansavelmente encontrar uma fórmula mágica para superar o abismo que há entre o número de horas que temos em um dia e a montanha de processos que aguardam decisões.
Limpar o armário torna-se uma obsessão quase "platônica". Nem mesmo terminamos uma pilha de processos e a sombra de outras três se avizinha para preencher o vazio.
A maioria dos juízes revive todos os dias o mito de Sísifo. Quando pensamos ter chegado ao topo da montanha, vemos a pedra rolando novamente. É um recomeçar sem fim.
Pisamos o chão da fábrica, sem perceber o ritmo frenético da esteira. Contudo, o ato de julgar não exige apenas o movimento mecânico, é essencial sentir para decidir.
Que fique bem claro, ao vestir a toga não perdemos a qualidade de ser "humano, demasiado humano", com tudo o que lhe é inerente.
Em cada processo, nos defrontamos com os problemas daqueles cujo destino o Estado colocou em nossas mãos. Tremenda responsabilidade, para a qual nos é exigida não apenas uma boa dose de conhecimento jurídico e bom senso, mas sobretudo sensibilidade para dar a melhor solução ao caso.
Ainda lembro do temor que tínhamos dos julgamentos de brincadeira do meu pai. Sentada na cadeira de "ré", pernas balançando no ar, sentia-me ainda menor, diante do julgador. Através daquela experiência, aprendi o que é estar do "outro lado da mesa", na posição de quem sofre a angústia da espera por uma decisão. E foi esse aprendizado que me permite, hoje, ver as pessoas além dos processos.
Passados quase sete anos de magistratura, ainda me sinto apaixonada pela profissão. Não posso negar que a toga ainda pesa e que sinto como se a carregasse costurada ao corpo. Contudo, se olhar bem, não fui eu que me moldei a ela, mas sim ela que se moldou a mim.
Excelente!
ResponderExcluir"Ver as pessoas além dos processos." Voce nasceu para ser pacificadora de conflitos. É uma pena que nem todos sejam assim. Sensibilidade social é indispensável para julgar independente da letra fria, morta e impassível da lei. Considero nosso sistema desumano, demasiadamente desumano. E é preciso ser um exemplo como voce para tentar mudar as coisas. Um abraço. E parabéns. p.S a coloquei na lista de leitura do Esconderijo do Observador. http://esconderijo-do-observador.blogspot.com/
ResponderExcluirSábias palavras.
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