Eusébio - O Navegador
Tenho fama de mandona. Injustamente, é claro. Ainda que por dever profissional meus verbos tendam ao imperativo.
Certo dia, meu marido acompanhava-me em uma consulta médica. Queixava-me de "dor aqui, dor ali". Minha herança hipocondríaca já me dizia que devia ser algo grave. Ricardo, como de costume, acalmava-me falando que não deveria ser nada, enquanto eu fazia ouvidos moucos e já pensava num possível epitáfio.
Nada que ele falasse seria suficiente para me demover da ideia de que deveria estar padecendo de uma doença grave e incurável. Depois do exame clínico o médico atestou: “Isso não é nada. Fique tranquila."
Inevitavelmente, olhei para o Ricardo e percebi aquela expressão facial, com um sorrisinho no canto da boca, que me dizia "eu bem que te falei". Poupou-me de ouvir, mas não seria necessário verbalizar. Entendi perfeitamente, sem uma única palavra. Por dentro deveria estar gargalhando.
Com o passar dos anos, é natural que a comunicação não verbal entre o casal aumente. Nem sempre na mesma medida da compreensão dos desejos de cada um. Aliás, esse tipo de comunicação cresce tanto que nos indignamos quando o cônjuge não adivinha o que obviamente queremos.
Ao final da consulta, Ricardo diz ao médico: "É, doutor, não é fácil ser casado com uma juíza. É todo o dia "cumpra-se isso, cumpra-se aquilo." Prontamente, o médico lhe respondeu: "Se te consola, pior é estar casado com uma psicóloga. Todo dia, ao chegar em casa ela quer discutir a relação”. Diante de tamanha franqueza, meu marido inclinou a cabeça para o lado, arqueou as sobrancelhas e sorrio, como quem encontra alguém em pior situação. Aceitou o desabafo como um prêmio de consolação. Talvez tenha pensado, "nada está tão ruim que não possa piorar".
No entanto, existem espaços em que não tenho nenhuma prerrogativa, seja de opinar, palpitar, sugerir etc. - muito menos mandar. Há nichos exclusivamente masculinos, impenetráveis pelas pobres almas femininas.
No carro, por exemplo. No trânsito devo resignar-me com a reles posição de passageira. A divisão de tarefas é muito clara. Posso até sugerir uma música, auxiliar as crianças etc., mas jamais reclamar pelo excesso de velocidade, ou quando ele usa o celular na direção ou resolve fuçar no GPS enquanto dirige.
Resigno-me porque sei que esse não é um problema de exclusividade minha. Acredito que dirigir, para os homens é um atributo da masculinidade, ainda que seja cada vez mais comum nos depararmos com uma taxista ou motorista de ônibus. A igualdade entre os gêneros já chegou às ruas e estradas, desde que seja a mulher na direção. Se ele estiver ao volante, amiga, sente-se confortavelmente na poltrona ao lado e desfrute da viagem, calada.
Até entendo meu marido e não lhe tiro a razão. Numa viajem, entregou-me um mapa. Olhei de "ponta para baixo" e disse: "Segue o fluxo para direita". Não fosse nossa intenção de chegar a Brasília, teria sido ótimo ter aportado na Bahia. Rodamos 84 km em sentido contrário à capital federal. Fiz a mea culpa pelo atraso ao nosso compromisso e nunca mais tomei a posição de "navegadora".
Neste último final de semana viajamos para o Sul de Minas, sem as crianças. Era para ser uma viagem a dois, mas fui surpreendida pela presença, digamos que marcante de um sujeito chamado "Eusébio".
Como não conhecíamos as estradas, Ricardo resolveu levar o GPS. Ao configurá-lo, poderia optar por uma voz feminina, chamada Amélia ou masculina, do Eusébio. Sem dúvida, ele preferiu o Eusébio.
Dessa vez, quem mandava era o Eusébio. Esse camarada, com sotaque português, estilo Roberto Leal, falava quase que toda a viagem. Convicta de cada um dos nossos papéis tomei meu livro e seguimos viagem, conforme os comandos do Eusébio.
Às vezes, interrompia minha leitura e ficava torcendo por um erro do português. Era até engraçado ouvi-lo falando: "Na próxima rotunda, meta-se na segunda saída à direita!" ou ""Curva plotada à esquerda", enquanto eu torcia por um errinho, apenas um. Talvez uma rua em sentido oposto ou um retorno inexistente, qualquer coisa. Porém, o português infeliz prosseguia sem equívocos. E eles seguiam fiéis um outro.
Em certa altura da viagem, resolvemos dar uma passadinha em Campinas, em um Shopping. Na saída, o Eusébio ordena: "Meta-se na primeira à Direita!", e assim fomos. E seguiu dizendo para nos "meter" a direita. Atenta ao local em redor, vi que estávamos andando em círculo. Morrendo de vontade de rir, contive-me. Queria desfrutar do prazer de ver o meu marido dando voltas e voltas, seguindo as ordens do Eusébio. Mas tudo que é bom dura pouco ele logo percebeu o erro.
Decepcionado com o atrapalhado "navegador", falou: "Vai dormir Eusébio, deixa que eu descubro a saída".
Olhei para o Ricardo, dirigindo-lhe um olhar meu irônico, comemorando o primeiro estranhamento entre os dois companheiros de viagem.
Descoberta a saída, seguimos a viagem. Peguei meu livro e voltei ao meu devido lugar, de passageira.
Fico muito feliz de fazer parte desta crônica, e principalmente, de fazer parte da vida de mulher incrivel que alem de ser juiza, mae, esposa, dona de casa, ainda consegue ser escritora, e para o meu gosto, uma òtima escritora.
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