Cinderela às avessas



Tenho sérias dúvidas quanto a minha capacidade de concentração.
Têm dias que vago em terras longínquas, completamente distraída.   Volto ao passado.  Volto a casas antigas. Relembro da gargalhada engraçada de uma amiga que já se foi. Tudo isso sem sair do lugar, porém tremendamente inconveniente para meu interlocutor.
Vivo esses devaneios de olhos abertos, por vezes, até conversando com alguém. O outro está diante de mim, lábios se movendo, mãos gesticulando, como se fosse um ventríloquo mudo. Percebo os movimentos, entretanto não ouço nada. Quando me dou por mim, fico torcendo para que não me pergunte qual era mesmo o assunto falado, para não agravar a mancada.
Por outro lado, adaptei-me a estudar e ler, mesmo que esteja tocando uma banda de música ao meu lado. A concentração é tanta que bloqueio todos os sons exteriores e me dedico exclusivamente aquilo que me propus a fazer.
Assim, se estou lendo, pode desabar o mundo ao meu lado, que não vou perceber. Tal a minha capacidade de absorção numa leitura.
Aconteceu outro dia, estávamos eu e meu marido em uma loja. Enquanto ele experimentava umas roupas, sentei colocando uma sacola na cadeira ao lado.
Para passar o tempo, resolvi ler o manual de uma máquina fotográfica que acabara de comprar. (Sim, embora atípico para alguns, sempre leio manuais de instruções).
De repente, no meio da minha leitura, um homem pediu para sentar na cadeira ao lado. Num ato meio que mecânico, retirei a sacola e continuei a leitura.
Não prestei atenção na pessoa que sentou do meu lado, ainda que por poucos minutos. Apenas percebi que estava calçando um par de tênis branco e que uma voz feminina lhe acompanhava.
Quando meu marido retornou, olhei para o lado e vi que o tal homem já tinha ido embora, no entanto, esquecera a sua sacola de compras.
Esperei um pouco para ver se o dono da sacola retornaria. Mas, nada. Ninguém aparecia.
Fiquei com receio de sair dali, sem procurar o homem, sob o risco de alguma pessoa de má-fé se apropriar da sacola, aproveitando-se do esquecimento alheio.
Pensei que, possivelmente, o homem do tênis branco lembraria da dita sacola e voltaria à loja para buscá-la. Também seria provável que ele lembrasse que ao lado da cadeira, havia uma mulher lendo alguma coisa.  E diante de um eventual desaparecimento de suas compras, a primeira suspeita, logicamente, recairia em mim.  
Ao mesmo tempo, um sentimento de solidariedade com o desconhecido homem do tênis branco me mobilizou a procurá-lo, a fim de lhe restituir as compras esquecidas.
De fato, coloquei-me no lugar daquele pobre homem, já imaginando a cena quando sua esposa notasse a ausência da sacola. Com certeza, iria brigar e espernear pelo imperdoável lapso de esquecimento. O infeliz evento seria lembrado por anos sem fim.  Afinal, delitos conjugais dessa natureza não têm prazo de prescrição. Sempre haveria a ocasião em que ela pronunciaria: “Lembra aquela vez...”.
Por tudo isso, decidi que não iria embora daquela loja enquanto não encontrasse o homem do tênis branco.
O grande problema é que a única coisa que eu recordava era a cor do tênis e que o modelo lembrava um “all star”. Nada mais. 
Na tentativa de me forçar a memória, o Ricardo começou a perguntar qual era a cor da roupa do tal homem, se era moreno, alto, baixo, loiro, etc. Nada. Eu não lembrava de mais nada,  além da cor do tênis.
Saí andando pela loja, olhando para baixo, procurando por pés calçando um par de tênis branco. Quando encontrava alguém, perguntava se não tinha perdido alguma coisa. E assim fiz, com várias pessoas, sem sucesso.
A situação começou a ficar hilária, porque eram muitos pés dentro de uma loja imensa. Após tanto buscar, reparei que vários homens estavam usando tênis semelhantes. Mudavam as marcas, entretanto os modelos, - meio brancos, meio beges, meio sujos – aos meus olhos, eram todos parecidos. Enfim, eram muitos possíveis donos da sacola perdida. Minha missão era quase impossível.
O tempo foi passando, na mesma medida da paciência do Ricardo. A certa altura ele me disse: “Esquece esse homem do tênis branco, vamos deixar a sacola no caixa e se ele voltar aqui vai procurar na administração da loja.”
Meio contrariada, concordei com ele, afinal ainda tínhamos que enfrentar a estrada no caminho de volta para casa.
Deixei a sacola na administração da loja, explicando as circunstâncias em que a havia encontrado.
As moças,  com olhares admirados, agradeceram a “boa ação”, o que para mim, não era mais do que um dever. 
O estranhamento talvez decorra do fato de que para algumas pessoas ainda vale o ditado “achado não é roubado”, aproveitando-se do acaso para se beneficiar do prejuízo alheio.
Lamentei não ter encontrado o homem do tênis branco. Lamentei mais ainda não ter prestado mais atenção naquele que, por um breve momento, sentou ao meu lado.
Mas, o que poderia eu fazer?  Em ocasiões de concentração e/ou distração, me desconecto do resto do mundo. Poderia ser quem fosse, meus olhos não desgrudariam do manual de instruções.
Então uma amiga perguntou, em tom de brincadeira: “Imagina, e se fosse o Brad Pitt?”.  Bem, para mim seria apenas um homem de tênis branco e nada mais.

Comentários

  1. Muito boa, tuas crônicas servem como inspiraçao para levarmos uma vida correta e com valores. Obrigado por dar este privilégio de ler alguns de teus pensamentos. Ricardo Schwertner.

    ResponderExcluir
  2. Lisandre, a leitura de tuas crônicas é muito agradável, e por isso fico ansioso para ler a próxima. Parabéns. Tado.

    ResponderExcluir
  3. Além do belo exemplo, suas palavras conduzem-nos sempre com suavidade.
    Parabéns!
    Fábio

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Deixe o seu comentário.

Postagens mais visitadas