Era uma vez um menino...
"Era uma vez um menino. Morto. Executado a tiros, numa cidadezinha do interior de Minas Gerais".
Esta sim poderia ser chamada de “história de bang-bang”. Mas, surpreendentemente, essa notícia não saiu em nenhum jornal ou na televisão. Ora, tratava-se apenas de um menino. Sua morte representou somente mais um número para a estatística da criminalidade.
Conheci B. em uma audiência. Menino desmilinguido, braços já tatuados, sentado numa cadeira em minha frente.
Como de costume, comecei lhe perguntando o que ele queria da vida. Continuei lhe fazendo uma série de perguntas. Afinal, queria que ele respondesse por que motivo se envolvia em atos infracionais. Perguntas difíceis para um adolescente perdido e sem rumo. Com um silêncio sepulcral, não me respondia nada. Mantinha a face voltada para baixo. Talvez não tivesse uma resposta.
Tinha à época cerca de 13 anos. Insisti, perguntando se ele não tinha receio de acabar na “cadeia”. Então ele balbuciou alguma coisa, balançando a cabeça e afirmando que sim. Sim, tinha medo de ser internado, “preso”. Era um menino “custoso” – como admitia a própria mãe, confessando não ter mais qualquer controle sobre o filho.
Ela tentava justificar que o menino fora criado sem pai, e que foram as más companhias que lhe desviaram do caminho.
Toda a mãe de adolescentes infratores chega à audiência com um ar de derrota. Misto de vergonha e sensação de impotência.
Que ninguém diga que criar adolescentes é coisa fácil. Por isso, não as condeno. Ao contrário, oriento e aconselho.
A intervenção inicial da Justiça, nessa fase, é tentar recuperar algo que foi perdido. É um processo de reconstrução de laços, de uma relação de confiança que foi quebrada.
Ao inquiri-las, faço-as voltar no tempo. Busco descobrir em que momento é que perderam o fio da meada.
Enredadas no labirinto de suas vidas, elas sempre repetem a mesma frase: “Esse menino sempre foi custoso, Doutora” – como expressão de que aquilo lhes é uma espécie de sina, um destino já traçado.
Geralmente, são mães que criaram seus filhos sozinhas, sem a presença da figura paterna. Filhos de relacionamentos fracassados, cujas mães – solitárias - não conseguiram ser eficientes em impor limites aos seus rebentos. Assim, o menino cresce, vai para onde quer, com quem quiser e encontra num determinado grupo o “espelho” que não teve no lar.
Em casa, sente-se “outsider”. O grupo é que lhe é a referência, onde encontra seus ídolos.
Os pretensos “colegas” são aqueles que prometem emoções fortes e pura adrenalina. Assim, começam os pequenos atos infracionais e vão progredindo, dia a dia, em direção a aventuras cada vez mais perigosas. Na mesma proporção, aumentam os flagrantes, os processos e as audiências.
Não faltava um único mês em que B. não era intimado para uma audiência. Todos os meses os nossos encontros. Todas as audiências os meus intermináveis discursos.
Nunca cansei de repetir as mesmas falas, os mesmos sermões. Nunca deixei de encaminhá-lo para projetos sociais e acreditar que a adolescência passaria e ele mudaria de vida.
Até que, no nosso último encontro, B. chegou na minha sala e pediu para ser internado em alguma clínica, declarando-se viciado em “crack”. Vi o medo em seus olhos. Suponho que estivesse devendo muito para alguém, caso contrário não estaria implorando para sair da cidade.
Com dificuldade, conseguimos a vaga e ele foi para tratamento. Contudo, passadas minhas férias, recebo a notícia de sua morte.
No mesmo instante, lembrei de sua mãe. Também sou mãe. Tive vontade de procurá-la. Confortá-la em seu desespero.
Nenhuma mãe é preparada para enterrar um filho. Solidarizei-me com sua dor, sobretudo com sua sensação de fracasso.
A grande verdade é que todos os processos judiciais que B. respondeu também fracassaram. Não foram suficientes para tirá-lo daquele submundo.
Tão menino para compreender que as regras daquele jogo, eram bem mais cruéis que aquelas estabelecidas pelo legislador, as quais eu insistia em aplicar-lhe.
Tão menino para enxergar que o melhor lugar do mundo ainda era o colo de sua mãe.
Foi-se cedo demais... deixando uma mãe de braços vazios.
Gostei. Achei muito bom, como todas as outras crônicas suas. Ricardo Schwertner.
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