Dia do Chocolate

Como era difícil dormir nas noites de véspera da Páscoa.  Minha irmã mais velha sempre dizia que tínhamos que ir para cama mais cedo, senão o coelhinho não traria os nossos ovos de Páscoa. Minha mãe concordava, com um quase riso no rosto, como quem escondia alguma coisa.

Desconfiada, certa noite resolvi ficar acordada até que o tal coelho aparecesse. Fiz de conta que já estava dormindo, quando percebi a chegada do meu pai. Silenciosamente, ele se aproximou ao lado de nossas camas e deixou os tão esperados ovos de chocolate.

Desfeita a ilusão, nunca mais acreditei na fantasia do coelhinho e seus chocolates, levando junto Papai Noel e outros personagens lendários.

Minha irmã, embora mais velha, continuava sempre crédula e chorava quando eu lhe chamava de “bobona”, por acreditar nessas coisas.

Em nossa casa, não havia maior ofensa que ser chamado de “bobo”.  “Sejam espertos!” – esse era o lema do meu pai.

Em que pese isso, minha mãe parecia ter gosto em manter a ilusão. A fantasia fazia parte da infância, então, fiz de conta que não sabia da verdade e parei de perturbar minha irmã.

Embora tivéssemos uma diferença de três anos, era ela quem sempre acordava com medo durante a noite e pedia para ir dormir nos pés da minha cama.

Outras vezes, dizia que tinha escutado algum barulho e suplicava para que fôssemos  dormir no quarto de nossos pais. Pegávamos nossos travesseiros e rumávamos para o quarto deles.

A cena era cômica.  Eu, deveria ter cerca de seis anos e era bem pequena para idade, em comparação com crianças da mesma faixa etária. A Lílian, por sua vez, sempre foi alta, a maior da classe.  Assim era o quadro: a baixinha, metida a corajosa e a grandona, declaradamente medrosa. Disfarçando o medo, eu seguia em frente, abrindo caminho, disposta a defender minha irmã grandona de qualquer perigo. 

Por igual, sentia-me no dever de abrir-lhe os olhos, sobretudo quanto às fábulas que os adultos nos contavam. De pouco adiantava os alertas, ela continuava crente no tal coelho que botava ovos.

Apesar da incredulidade em relação ao coelhinho, - como todas as crianças -,  sempre aguardei ansiosa pelos chocolates do domingo de Páscoa.

Naquele tempo, certas coisas eram como produtos de luxo, permitidos somente em ocasiões especiais.

Exemplo disso era o refrigerante. Recordo da mesa posta, num aniversário ou almoço especial. Na hora da refeição, apenas um litro da bebida na mesa, o que incrivelmente atendia a todos os comensais.

Da mesma forma, o chocolate. Quando meu pai viajava, sempre nos trazia  chocolates de presente. Ouvíamos o barulho do motor do carro entrando na garagem e corríamos à porta, esperando pelos pacotinhos saindo da mala.

Chocolates vinham somente em momentos especiais.

Doces dos dias comuns eram as balas. Íamos ao armazém da esquina e voltávamos com um saquinho de papel de seda com as pontas torcidas, cheio de balas: “Banzé”, “Chita”, “7 Belo” , “Soft” etc. Saudades daqueles dias...

Hoje, é provável que poucas crianças ainda acreditem em Coelhinho da Páscoa.

De regra, já escolhem um dos ovos de chocolate que viram na televisão, e de preferência que venha com algum brinde. O chocolate é o que menos importa.  Afinal, o que interessa é o produto agregado em seu interior, seja um brinquedo de montar ou um acessório assinado pelo astro mirim do momento.

Os pais ficam dispensados do engodo. Podem dormir na noite de sábado, sem se preocupar em pintar as trilhas de patinhas de coelho pela casa ou esconder as cestas com as guloseimas de chocolates. Basta que cumpram seu papel de consumidores, seja por tradição ou pelo mero instinto de seguir o bando. Páscoa é dia de chocolates e ponto final.

A tradição do coelho da páscoa chegou à América no final do século XVII e início do XVIII, herança dos imigrantes alemães e representando a fertilidade. Somada ao ovo de chocolate, tornou-se símbolo do início de uma nova vida.

Sobre a origem da Páscoa, há muitas histórias. De qualquer forma, o período do ano em que é comemorada sempre esteve vinculado a um rito de passagem.

Há milênios os povos europeus, durante o mês de março, celebravam o fim do inverno e o início da primavera. Atormentados pelos por invernos rigorosos, a primavera trazia a esperança de produção abundante de alimentos e melhores condições de vida.

Para os judeus, a Páscoa (“Pessach”) é símbolo da libertação da escravidão do Egito, marcada pela passagem do Mar Vermelho.

Já na tradição cristã, comemora-se  a ressurreição de Cristo, que passando da morte para vida, trouxe esperança de libertação aos homens presos em suas transgressões.

Atualmente, a páscoa é época de lojas e hipermercados lotados. A tradição perdura, agora tendo por foco o aquecimento nas vendas.

Quem sabe alguns ainda a relacionem com ritos de passagem , promessas de vida abundante ou libertação.  Mas creio que são poucos. 

Meus pequenos gêmeos ainda não compreendem nada disso. Olham para os ovos de Páscoa sem entender sua simbologia. Mordem o chocolate, meio desconfiados, mas logo descobrem seu gosto doce e marcante.  Dali em diante, são mãos inteiramente lambuzadas, roupas sujas e tudo o mais que lhes tiver ao alcance.

Eles ainda não calculam datas. Não contam os dias esperando por feriados. Não sabem que o tempo corre, entre semanas, meses ou anos.  Vivem cada dia, como se fosse único. 

Encanto-me ao ver suas brincadeiras, de quem vê o mundo como se fosse pela primeira vez.  No entanto, não tardarão em compreender que na época em que os coelhinhos são massivamente mostrados na TV, é hora de chocolates e pedi-los aos pais.

Talvez minha irmã tenha sido uma das últimas crianças que ainda acreditava na fábula do coelho da páscoa trazendo chocolates.  Deixava-se iludir pelo prazer de viver a fantasia. Era criança, no verdadeiro sentido da palavra.  Ingênua e inocente.

É, não se fazem mais crianças como antigamente...

Comentários

  1. Lindo texto Lisandre... A propósito, gostaria de aproveitar e dizer que você é uma espécie de inspiração pra mim(acredite, sem nem ao menos conhece-la!!), que pretendo também ser magistrada...Acabei de me formar em Direito e ver uma mulher inteligente, surpreendentemente jovem e elegante como você, e principalmente, com a sua postura e determinação, é algo inspirador. Um forte abraço, Brunna. Montes Claros/MG

    ResponderExcluir
  2. Cara Brunna,

    Fiquei lisongeada ao ler teu post. Sabe, Brunna, tenho seguido minha vida profissional guiada pela razão e também pela emoção, o que orienta meu sentir em cada decisão.
    Muitos ao ingressar na magistratura, pensam apenas em status ou segurança financeira. Porém, esquecem que o juiz vive meio que um sacerdócio. É doar-se de corpo e alma. É olhar para o Outro, tentanto ver não apenas o que ele mostra, mas sobretudo quem realmente ele é e como chegou até ali diante de mim. Daí a necessária sensibilidade para julgar.
    Enfim, amo o que faço, ainda que seja um caminho duro a ser percorrer. Falo como juíza estadual, o que chega em minhas mãos aflora nas esferas mais íntimas dos indivíduos. Isso porque trazem ao juízo suas dores em um divórcio ou violência doméstica,e até o momento mais sofrido do ser humano: a morte.
    Siga seu sonho. Não desista. Muitos ficam pela estrada por desânimo ou por pensar que o esforço não vale o resultado.

    Fraterno abraço,


    Lisandre Figueira

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Deixe o seu comentário.

Postagens mais visitadas