Viva o dia da mentira!



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Na tarde deste domingo minha filha lembrou: “Hoje é o dia da mentira!”.

É verdade. Dia 1º de abril é também conhecido como “dia dos bobos”. Que bom se fosse assim: apenas um dia no calendário anual. Tipo carnaval, um tempo para ser feliz, mesmo sem motivos reais. A proposta seria: "Tempo para mentir, mesmo conscientes da verdade". Contudo, mentir seria permitido tão-somente neste dia. No resto do ano, viveríamos todos de verdade.

Na época da escola, eu temia essa data. Qualquer pergunta gerava desconfiança, pois poderia ser uma “pegadinha”. Ninguém quer ser enganado. Quando crianças, meu pai nos alertava: “- Lembrem-se: na vida, não devemos ser ingênuos demais. O mundo é dos que estão atentos”. Ele nos dizia isso na intenção de que não fôssemos vítimas das trapaças alheias. E havia uma certa razão nisso – nem todos que se dizem amigos realmente o são.

Mais tarde, na fase de amadurecimento, me deparei com a crônica de Clarice Lispector, intitulada “Das vantagens de ser bobo”. Segundo ela, "o bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos (...) Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie." (“Clarice na cabeceira”, Ed. Rocco). Ou seja, ser um "pouquinho" ingênuo não faz mal a ninguém.

Talvez haja, realmente, vantagens em ser um pouco ingênuo. A verdadeira ingenuidade é muitas vezes uma fonte de felicidade, por não estar carregada de suspeitas constantes. Poderíamos desconfiar dessa simplicidade, mas, como concluiu Wittgenstein, “nada é tão difícil quanto não se enganar a si próprio”. Muitas vezes, livre e espontaneamente, colaboramos para o autoengano.

Além disso, as artimanhas contra aqueles considerados ingênuos geralmente não são tão elaboradas – subestima-se sua capacidade de percepção. E assim, existem aqueles que preferem parecer ingênos e inofensivos, muitas vezes para evitar atrair atenção ou conflito.

É complicado viver num mundo que carece de honestidade. A transparência parece ser um ideal cada vez mais distante. Na política, por exemplo, ficamos desconfiados quando nos deparamos com aqueles que se autodenominam arautos da verdade. Muitos que se promoveram com discursos de combate à corrupção acabaram desmascarados, acusados dos mesmos erros que antes combatiam.

Na labuta jurisdicional, temos procedimentos legais para se buscar a verdade. Apesar disso, é comum ver pessoas se refugiando em mentiras como estratégia. Recordo-me de uma audiência criminal ocorrida anos atrás. Durante o interrogatório, ouvi o réu relatar como se deram os fatos. Era uma autodefesa que se sustentava em circunstâncias fisicamente impossíveis. Mas como há o dever de dizer a verdade... Talvez ele tenha pensado: "- Vai que cola...".  Fiz aquela cara de paisagem e prossegui ouvindo a autodefesa, enquanto pensava: “- Sério? A Justiça pode ser cega, mas não é ingênua”.

Diante do abismo entre o mundo ideal – aquele que deveria ser – e a realidade, quem dera pudéssemos viver de mentirinha apenas hoje, no dia 1º de abril.

Como Eduardo Giannetti analisa em “Auto-engano”: “Para cada uma das partes isoladamente, o oportunismo imediatista é a melhor saída (...). Mas para todos eles em conjunto, no espaço compartilhado de sua convivência pública e privada, o resultado agregado dessa opção termina sendo péssimo. Embora cada um tenda a ficar em situação ainda pior caso abra mão sozinho de sua esperteza egoísta, todos juntos estariam seguramente em situação muito superior sem ela.”

Distantes do mundo ideal, cientes de que amanhã ele continuará sendo complexo e, muitas vezes, injusto, só nos resta aproveitar esse domingo, literalmente, de "bobeira".

Leia mais:

https://rocco.com.br/produto/clarice-na-cabeceira-contos/?

https://www.companhiadasletras.com.br/livro/9788535907421/autoengano?



 







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