Livraria, Sebos e Cia.




Meu esconderijo num shopping é a livraria. Digo, as que ainda resistem com bravura com as portas abertas. Nenhuma outra loja poderia ser mais acolhedora para mim. E se tiver uma cafeteria, o banquete está completo.

Tudo ali é convidativo: o cheiro do café no ar, o pão torrado, o barulho do leite sendo vaporizado. Para ser sincera, não é a bebida que me atrai, mas o aroma. O cheirinho de café me leva de volta às manhãs preguiçosas na casa da mãe. O pai sentado à mesa, lendo seu jornal. O cachorro ali por perto, esperando uma migalha que sobrasse. É um cheiro que tem a cara de nostalgia.

Dizem que a Helena, minha pequena, se parece muito comigo. O Ricardo faz questão de dizer que ela é “geniosa” como a mãe. Temos realmente muitas semelhanças, mas não é isso o que ele ironicamente destaca. A Helena mal aprendeu a andar e já começou a bagunçar a estante de livros na sala. Seu gosto é bem eclético. Agora está na fase das princesas: "A Bela e a Fera", "Cinderela", e, por último, "Branca de Neve". Onde quer que vá, carrega um mundo de coisas embaixo do braço. Não pode faltar um livro e a inseparável chupeta cor-de-rosa.

Quando chego do trabalho, mal tenho tempo de largar a bolsa, e lá vem ela, correndo, pedindo para eu contar, pela milésima vez, a mesma historinha. E, por mais repetitiva que seja, ela ouve como se fosse pela primeira vez.

Neste fim de semana, fomos a um shopping em Belo Horizonte. Enquanto o irmão gêmeo me puxava para a loja de brinquedos, a Helena pediu para ir à livraria. Para resolver, pensamos: o pai vai com o menino para um lado, e a mãe vai com a menina para o outro. Tal mãe, tal filha, amamos uma livraria. Parecíamos duas crianças.

Quando entro numa livraria, não quero pressa. Não quero hora para ir embora. Faço birra se alguém interrompe minha busca. E, no fim, sempre saio com a sensação de que não comprei tudo o que desejava. Difícil é escolher apenas um livro. Optar por um significa deixar os outros para trás. E esse dilema é resolvido, por nós duas, da mesma maneira.

O cheiro de livro novo é um convite. Lembra também início de ano letivo, caderno novo. Um livro é sempre uma promessa. Cada frase, uma possibilidade. Viro as páginas com um sentimento ambíguo de querer chegar ao fim, mas também de desejar que a história continue.

Termino o livro com a estranha sensação de intimidade com os personagens. A última página geralmente deixa um vazio. E confesso que essa minha paixão não tem preconceito com idade.

Quem conhece Porto Alegre sabe que a Rua da Ladeira é parada obrigatória para quem busca raridades. Dos dois lados da rua, estão vários sebos, um ao lado do outro. Diferente dos livros novos, os garimpados nos sebos têm duas histórias para contar. A primeira, escrita pelo autor. A segunda, rabiscada à margem. Nas linhas sublinhadas, nos marca-páginas antigos, numa florzinha seca perdida entre as páginas.

Já encontrei livros usados com dedicatórias amorosas, com caligrafia desenhada, uma arte que já quase ninguém sabe fazer. Outros, autografados pelos próprios escritores. Coisas raras. Fico com pena de vê-los ali, abandonados. Pelo menos, ao chegar nas prateleiras do sebo, o livro rejeitado ganha uma segunda chance. Quem sabe, um novo amor. Alguém que se encante com seu português arcaico.

Os códigos legislativos ultrapassados são outro dilema aqui em casa. Um sentimento de piedade toma conta de mim. Por mais que tenham perdido a validade, não consigo retirá-los da estante. Colocá-los no lixo? Definitivamente, não consigo. Então, os aposento por invalidez e os deixo repousando na prateleira, até futura deliberação.

Nessa era de consumo imediato de informação, parece que algumas pessoas se contentam apenas com o título da reportagem. É o conhecimento fast food, servido no drive-thru. Não acredito em conhecimento “an passant” e não escondo meu ceticismo sobre as histórias contadas em programas de TV ou na internet. De todos esses meios, me considero resolutamente antiquada. Tenho um certo apego ao papel.

De repente, espantada, vejo meu reflexo na Helena. Alguém poderia dizer: “Mas ela nem sabe ler.” Ora, só quem não tem imaginação é que pensa que livro serve apenas para ler. Quando somos crianças, vemos um livro e o imaginamos um túnel para carrinhos. Vemos dois livros abertos e logo pensamos em uma casinha de bonecas. Pega-se uma pilha deles e transforma-se em escada. Quando bate o sono, é só cobrir o rosto, e tudo se faz noite. Aos olhos de uma criança, nada é o que parece ser.

Meu pai conta que, aos sete anos, ao olhar para sua biblioteca, lhe perguntei: “Pai, quando você morrer, quem é que vai ficar com todos esses livros?” Não me lembro desse incidente, nem sei o que me passava pela cabeça ao fazer essa pergunta tão imprópria. O que lembro é ouvi-lo dizer que a única herança que nos deixaria seria o estudo, e que fizéssemos bom uso desse legado.

Agora, olhando para a Helena, vejo o ciclo recomeçando. O brilho nos olhos dela ao chegar à livraria. O assombro diante da prateleira. Quem sabe, um dia, ela olhe para minha biblioteca e pergunte: “Quem vai ficar com tudo isso?”

Mas, enquanto esse dia não chega, quero continuar ouvindo, como todo dia, a frase dela: “Conta, mamãe! Conta mais uma 'toinha' mim...”.

Comentários

  1. Nossa que fabuloso....realmente é de encher os olhos por tamanha belezura de expressão.

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  2. Belo texto, Lisandre! Adoro seus escritos! Fico feliz que mais alguém compartilha comigo o amor ao papel e o apego com as páginas já amareladas...

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  3. Que delícia de texto! Meu pensamento voou longe e acredito que senti o cheirinho do café... aqui em casa a história também se repete e entre livros, histórias e figuras, vamos armazenando momentos lindos assim na memória.

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  4. Tão encantador! Compartilho, integralmente. Só reler este texto, pude inspirar os cheiros e deleitar as cores, inclusive, sépia. Abraço.

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