No que você está pensando?

Sutil como uma marca d'água. De fato, não havia reparado na pergunta que consta no espaço para atualizar o mural do facebook. Outra noite é que me deparei com "ela", ali, me interrogando "o que é que eu estava pensando".
Era quase meia-noite, estávamos em Caldas Novas e minha filha pequena com febre. Para ser sincera, naquele momento a única coisa que eu pensava era estar em casa, onde toda mãe tem sua farmacinha básica e o pediatra de confiança, para ajudar a contornar o problema.
Poderia ser amigdalite, rinite e tantas outras "ites" que crianças pequenas pegam por aí. Mais provável que fosse uma dessas "oses". Quando os médicos não sabem ao certo o diagnóstico, geralmente dizem: "Deve ser alguma virose". 
Administrado o medicamento e passado algum tempo, a pequena dormiu levando junto consigo o meu sono. Àquelas horas, só pensava em reencontrar meu sono perdido.
Insone, resolvi conectar o facebook e então vi "a pergunta", meio camuflada, mas ali bem diante de mim. Travei, literalmente. Nossa! Quantas vezes fiquei "danada da vida" quando me fizeram essa pergunta.
Ora, quanta indiscrição! Não sei se existe o que poderíamos denominar de "etiqueta do pensador", mas não tenho dúvida de que quando alguém está absorto em seus pensamentos, a última coisa a se fazer é interrompê-lo.
Aprendi assim desde criança. Às vezes flagrava meu pai, olhar ao longe, queixo apoiado nas mãos, lembrando a escultura de Rodin.  "No que estaria pensando?". Às crianças não era permitida a intromissão nos assuntos dos adultos, o que se dirá interromper-lhes os pensamentos. Ai de nós se o fizéssemos...
Cresci e confesso, também não suporto a dita pergunta. Por vezes me distraio e me flagro a pensar. De repente, vem "a pergunta". Sinto como se tivessem acionado a corda de um pára-quedas em plena queda livre. Um solavanco. É como se fosse forçada a voltar bruscamente de algum lugar. Refém que não quer resgate.
Entendo perfeitamente a situação do outro. O silêncio repentino, o olhar fixo, perdido num ponto do horizonte, traz a sensação de que nossa companhia, de um segundo para outro, foi abduzida para algum lugar obscuro do universo, deixando apenas um corpo vazio.
Mesmo aos íntimos, estar a pensar pode ser incômodo, desconfortável. A intimidade traz a ilusão de que é um dever recíproco o compartilhamento de todos os espaços, inclusive os pensamentos. Tal cláusula jamais constou de um pacto antenupcial válido, por obviamente abusiva. No ato de pensar não há condomínios, somente propriedade exclusiva. Inadmissíveis quaisquer atos de turbação ou esbulho.
Pensamos em tanto coisa, adequada ou inadequada. Basta uma cena qualquer, para acionar um gatilho, estopim de lembranças. Em segundos, voltamos ao passado, à casa da infância, com a velha pitangueira no quintal, os armários de brincar de esconde-esconde, as laranjas mais doces do mundo etc. É como se entrássemos numa cápsula do tempo e voltássemos ao passado, não mais como protagonistas, mas agora apenas observadores.   Em nossas lembranças recriamos um passado, com os caquinhos guardados na memória. Tudo isso tão caro para o indivíduo, muitas vezes, sem qualquer relevância para o outro.
"Pensar é transgredir", diria Lia Luft, com quem concordo plenamente. Somos livres ao pensar, o que possibilita os questionamentos e com ele o desejo de mudança do "status quo". Pensar pode ser um processo doloroso, ante a percepção de si mesmo e a inquietude dela decorrente.
Contudo, ainda que seja dessa forma, com todos os riscos inerentes, quero continuar livre em meus pensamentos. Quero respeito aos meus devaneios. Quero seguir em queda livre, acordar no chão se for preciso. Para evitar desentendimentos, talvez uma placa de "não perturbe" fosse a solução.
Diante do desconforto causado pela pergunta, desliguei o computador e abandonei o facebook, sem "curtir" ou "compartilhar" nada.
Pelo menos naquela noite, foi congruente com meu velho discurso e guardei somente comigo o que estava pensando.

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