Acessório incomum


O quanto um acessório pode mudar a forma de se ver o Outro? Deparei-me com a pergunta ontem, voltando de viagem. É, você já deve ter percebido que eu "viajo" muito durante as viagens.  Pleonasmo. No  mais puro sentido da palavra.
Lembrei da época em que  morávamos em Uberaba.
Tínhamos três cães, digo, cadelas: uma Shi-tzu, uma Cocker Spaniel e uma Labradora. Somente fêmeas.
 Brincava com o Ricardo que ele era o macho alfa da casa, entre duas mulheres e três cachorras.
Nos finais de semana saíamos para passear com as três cachorras, e era habitual as pessoas nos pararem na rua para conversar.  Contavam de seus cães, filhos, problemas de saúde etc. E a conversa se alongava...
Tinha uma vizinha, já bem idosa, que sempre saia de casa logo que percebia nossa aproximação.  "Oh, suas vagabundas!", gritava ela, com a voz rouca de quem fumava há muitos anos. 
Ora, a princípio eu achava um desaforo chamar minhas cachorras de "vagabundas"!   Depois compreendi. Era um jeitinho carinhoso de tratar os cachorros. Meio estranho, porém afetuoso.
Em 2006, mudamos com toda a trupe canina para Buritis. Aqui, deixaram de ser “as vagabundas", passando a ser conhecidas como "As Cadelas da Juíza" (no bom sentido, espero). Mas, não deixaram de chamar a atenção quando saímos a passeio. 
Passear com cães, em qualquer lugar do mundo,  é sempre um bom pretexto para iniciar um bate-pato.
Melhor que isso, só mesmo passeando com bebês gêmeos.
Logo que os gêmeos nasceram meu marido fazia questão de levá-los a tiracolo para o Shopping e restaurantes. Carregava os dois “bebês conforto”, um em cada braço. "Está pesado?" - eu perguntava. " Não, não está." -, respondia ele.
É inegável que um homem cuidando de um bebê sempre causa uma certa "comoção" na ala feminina.  Acreditem, é um chamariz infalível. Parece que há algo de incrivelmente atraente num homem com um bebê no colo, segurando chupetas e bolsas,  repletas de fraldas e madeiras.
Bastava eu me afastar um pouco e logo ele era cercado de mulheres fazendo um coro de " Ooooohhhhh!, que gracinha!".
Ainda tenho sérias dúvidas se o adjetivo destinava-se às crianças ou ao pai "halterofilista de bebês conforto”.
Atualmente, em matéria de acessórios, para mim vale o ditado " menos é mais". Contudo,  nem sempre fui assim.
Com catorze anos recebi o convite  para minha primeira "reunião dançante".  (Nossa! Será que alguém ainda lembra dessa expressão? Definitivamente, o termo entrega minha faixa etária. É, confesso minhas origens, fincadas no século passado).
Na época,  "festinhas" do gênero eram imperdíveis. Então,   preocupei-me em estar bem vestida, produzida.
Coloquei uma roupinha básica.  Moda anos 80. Com a ajuda de uma amiga, fiz um penteado, estilo "Farrah Fawcet", aquela do seriado "As Panteras". Mas, ainda faltava alguma coisa, um adereço, um complemento.
Então,   achei na cômoda da minha mãe um imenso brinco de pressão. Tinha uma bolinha preta na base e um enorme losango pendurado, cheio de pedrinhas de strass. "Perfeito!". Estava pronta para sair.
Durante a festa, percebi que as pessoas  não tiravam os olhos do negócio pendurado nas minhas orelhas.  Embora meu senso estético não fosse muito apurado, meu “desconfiômetro” me dizia que minha produçao não estava agradando. Sentia meus lóbulos quentes, pegando fogo. Passava pelos corredores da casa e ouvia os buxixos. "O calor nas orelhas é apenas autossugestão", tentando me confortar em pensamento.
Minhas orelhas realmente ardiam, no entanto  não era em razão dos comentários sobre meu visual extravagante, mas sim, por causa da pressão dos brincos, que quase levavam meus lóbulos à gangrena.
No meio da festa um menino me disse: " Baaah! Que coisa estranha!" . " O que?", perguntei. " Esse treco horrível nas tuas orelhas" . Sim, eram horrendos. Diante de tamanha sinceridade,  sai de fininho e arranquei os instrumentos de tortura no caminho de volta para casa. Fim de festa.
Já na faculdade, estudando Direito das Coisas, conheci o clássico princípio que reza, salvo disposição em contrário,  que "o acessório segue o principal". É a velha máxima romana: accessio cedit principali. Tal princípio denota a relação entre bens reciprocamente considerados.
Na vida, ao contrário, as coisas nem sempre seguem essa regra.
Por vezes julgamos o Outro pelo acessório. Ainda que o indivíduo seja o principal, tendemos a  submetê-lo a uma espécie de "checklist": modelo do carro,  conta bancária, marca da roupa, sapatos, relógios, jóias, bolsas etc. Aprovado na primeira etapa, talvez seja considerado apto para um começo de conversa.
Há algo de inadequado em tudo isso. Pouco importa o que você ê. Interessa o que você tem ou aparenta ter. Daí a corrida maluca por sinais exteriores de poder. É preciso ostentar.   Ser o "pavão" da hora.
Sempre fui adepta do "self made", ou seja, do "faça você mesma". Tenho orgulho de dizer que sei costurar, fazer crochê, frivolitê, tricotar - o que hoje parece ser tão "démodé", antiquado.
Ao tecer uma peça de forma artesanal, surpreendo-me com minha paciência e autodeterminação. Ponto por ponto. “Enredando linhas”, como diz meu Pai. Vejo os desenhos se formando e penso o quanto de beleza e  delicadeza podem sair de minhas mãos.
Nós mulheres perdemos muito ao adotarmos métodos masculinos de agir, seja no trabalho ou mesmo no âmbito familiar. Queremos conquistar, cada vez mais, espaços de poder, porém esquecemos que é nossa  a "mão que balança o berço". Essa mão é delicada. Embala o mundo com suavidade e destreza. É ela que determina o ritmo, a cadência das coisas.
Nessas últimas semanas, desde meu acidente, minhas mãos ganharam um pouco de aspereza e calosidade.    Meus novos acessórios, - muletas e cadeira de rodas -, estes com efeito, me exigem força e equilíbrio.  Obrigam-me a olhar o mundo sob nova perspectiva. Novo ângulo.
Foi ao Shopping de cadeira de rodas, experiência inédita na minha vida.
Meu marido empurrava a cadeira,  enquanto eu observava as pessoas que passavam. Uns olhavam na minha direção e logo desviavam o olhar. Talvez a situação lhes parecesse um tanto constrangedora. Outros, se houvesse oportunidade, vinham curiosos, querendo saber do acidente,  aproveitando para contar um caso de algum parente azarado que também sofrera uma fratura.
Em certa altura do passeio, resolvi tentar guiar o meu novo veículo sozinha. Fugi do meu motorista e me aventurei sob duas rodas.
Tudo corria bem até eu entrar num estreito corredor de uma loja.  Encurralada, sem saber engatar a marcha ré, fiquei com vergonha de pedir ajuda. Por fim,  fui salva por uma simpática atendente que empurrou minha cadeira até um local mais espaçoso.
No percurso para outra loja, um rapaz brincou: " Arrumou uma botinha diferente, hein?" , referindo-se a bota ortopédica, visual meio futurista, que agora faz parte do meu novo "look".
As pessoas reagem das mais variadas formas ao olhar para alguém numa cadeira de rodas: piedade, solidariedade, evitamento, curiosidade etc.
Minha condição temporária não me causa grande sofrimento. Até consigo rir de mim mesma e  aproveito para dar uma de cientista social, observando as reações do Outro diante do meu novo acessório.
Exige-se muita força para empurrar uma cadeira de rodas ou empunhar muletas.  Somos especiais nessa condição.
Não ter que enfrentar filas ou arrumar facilmente uma vaga no estacionamento,  até pode ser uma compensação. No entanto, maior força é necessária para enfrentar o olhar de estranhamento do Outro,  diante do que lhe é diferente, incomum.

Comentários

  1. Gostei demais dos textos que pude ler aqui.
    Muito bem escritos e elucidativos.
    Deixo-te um grande abraço.

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  2. Obrigada, Malu. Tua opinião é um estímulo para prosseguir. Grande abraço.

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