Rasteira do acaso
Cai. Feito uma jaca madura, cai. Por favor, não me pergunte como. Não saberia explicar. De repente, um pé vacilou e, acreditando no apoio do outro, deixei todo o peso do corpo sobre ele. O fato é que este não suportou, torceu e quebrou.
Já estatelada no asfalto, olhei para os lados para ver se alguém tinha testemunhado meu tombo. Ninguém por perto. Que pena! Com certeza, minha queda renderia uma bela "vídeo cassetada". Então, sentada no chão, comecei a rir da cena da mulher que cai, tropeçando nos próprios pés.
Por alguns minutos fiquei paralisada, tentando digerir a situação. "Para onde eu ia mesmo?" Ah, pouco importava. Num piscar de olhos, todos os sinais que apontavam para tantos sentidos desapareceram. As largas avenidas sumiram. Talvez fossem apenas miragem. Inacreditavelmente não tinha dor. Era a raiva que me incendiava. Raiva de mim mesma. "Como pude ser tão tonta e cair daquele jeito?!"
Ainda ajoelhada no chão, limpei as mãos, bati a poeira e resolvi checar o que tinha acontecido com meu pé esquerdo. Fixei o olhar, mas não o reconheci.
Arestas pontiagudas se projetavam, onde antes até havia uma certa harmonia. A entorse no tornozelo fez com que alguns ossos se projetassem sob a pele. Não havia fratura exposta, porém o resultado era péssimo. Reneguei meu pé esquerdo, como a mãe que rejeita um filho.
Admito que nunca imaginei ter um belo par de pés, mesmo antes da queda. Meus dedos apinhados, uns sobre os outros, dão a impressão de que o segundo dedo é ligeiramente maior que o primeiro.
Quando criança, uma tia dizia que isso era um mau agouro, sinal de que eu mandaria no meu marido. Ficava furiosa ao ouvir a afirmação. Afinal, naquela época, mandar no marido não era uma qualidade a ser aclamada por aquelas que tencionavam ser boas esposas. Assim, queria provar-lhe, a todo custo, que o segundo dedo não era maior, tã0-somente se acavalava sobre o primeiro. "Ilusão de ótica", eu lhe dizia.
Já adolescente recusava usar sandálias, com vergonha dos pés e ainda assombrada com a "leitura" feita pela minha tia.
Passados os anos, fiz as pazes com meus pés. Já não tenho preconceitos com sapatos abertos, desde que sejam confortáveis. Por isso, tenho o hábito de sempre comprar um número maior, para não correr o risco de passar por apertos.
Bem, na fatídica manhã, depois de ter renegado meu pé retorcido, logo fui tomada por um sentimento utilitarista. Conclui que sem ele eu não sairia do chão, então, decidi consertá-lo.
Sem muito pensar, girei meu pé na tentativa de colocá-lo no lugar. Torci a primeira vez, mas o resultado não ficou bom. Seriam necessários uns retoques. Torci outra vez e as arestas pontiagudas desapareceram. Pronto! Agora, era só calçar o sapato e .... Ops! Alguma coisa continuava errada. O pé simplesmente não firmava no chão. Cambaleava feito um bêbado, pendendo de um lado para o outro. Diante do quadro, me dei por vencida. O estrago era grande demais para levantar sozinha e voltar caminhando.
Sem celular e estirada próximo ao meio-fio, esperei por um bom samaritano, que felizmente não demorou a aparecer.
No hospital, o médico informou que o tornozelo quebrado precisaria de imediata intervenção cirúrgica, colocação de placas e parafusos.
Enquanto aguardava entrar para o bloco cirúrgico, dois companheiros de sala relatavam seus infortúnios. Um deles havia quebrado o joelho no jogo de futebol e o outro sofrera um acidente de motocicleta. Não tardou para que me fizessem a dita pergunta, a qual respondi, com cara de pouca conversa: " - Tropecei e cai, sozinha" -, sem querer entrar em detalhes de como a força da gravidade me fez ruir no chão. E quem haveria de estar animada para um bate-papo pré-operatório, vestida de avental hospitalar e touquinha na cabeça ?
Após a cirurgia, com 2 placas e 22 parafusos na perna, ainda tento entender como um simples escorregão fez sumir o chão sob meus pés. Teria sido minha pressa? Minha cabeça noutros mundos? A noite maldormida? Mero Azar? Sei lá.
Ali, sentada no asfalto, vi evaporar toda minha fortaleza, minha pretensão de independência, minhas urgências. Tive vontade de chorar, mas as lágrimas não vieram. Senti-me insuportavelmente frágil, desamparada. Atropelada pelos meus próprios pés, quis descer do trem, antes mesmo de sair da estação.
Ali, desejei profundamente desembarcar nos ombros largos do Ricardo. Encontrar repouso da minha desastrada viagem. Quis tanto suas mãos imensas para recolher meus caquinhos. Ouvir sua voz grave, seus dedos entrelaçados nos meus cabelos, me dizendo que tudo iria ficar bem...
Sim, às vezes é preciso levar uma rasteira do acaso para ter os olhos abertos para o essencial em nossas vidas.
Espero que o essencial seja minha prioridade.
ResponderExcluirLorena Chaves.
Obrigada, Lorena. Grande abraço,
ResponderExcluirLisandre