Largada às moscas

Nos últimos dias meus horizontes se estreitaram.
Fico aqui no meu quarto, literalmente, com os pés para cima.
Ordens médicas.  "Não fique pulando num pé só! Isso prejudica o joelho”. “Não fique sentada por muito tempo, vai causar edema no local da fratura".
Assim, resta-me ficar deitada, escorada, encostada etc.  A vida no particípio.
Da janela do quarto posso ver o muro alaranjado e uma pontinha do céu azul. Diria, um horizonte,  60% laranja e 40% azul.
Em outros tempos, além do muro, poderia ver um imenso pé de manga do quintal vizinho.
Dizem que a "grama do vizinho é sempre mais bonita".  No  caso, o pé de manga do meu vizinho é que era muito mais bonito.
Você não deve estar compreendendo toda essa animação por um simples pé de manga.  Deixe-me  explicar.
De onde eu venho, o clima não colabora com o cultivo de mangas. Gaúcho só come manga de supermercado. Comemos laranja do pé,  bergamota (mexerica), maça, pitanga etc.  Manga, não. Nunca tive o prazer de comer manga do pé. Recalque de infância.
Quando mudei para Minas Gerais disse que gostaria de comer pão de queijo, tomando chimarrão, embaixo de um pé de manga. 
Bem, já se passaram quase sete anos e ainda não tive um pé de manga para chamar de “meu”. Na falta deste, admirava o do quintal vizinho. 
Da janela do meu quarto podia ver a frondosa mangueira.
Acompanhava a época da florada. O vento trazendo as flores secas para cima da fronha do travesseiro. Florzinhas minúsculas.
Depois, as frutas crescendo. As mangas amadureciam e adquiriam uma matiz rosa-amarelada. As danadas pareciam estar ali só para me tentar.
As araras vermelhas e maritacas vinham lambuzar o bico, fazendo aquela algazarra de dar inveja. E eu aqui, de longe, só cobiçando a propriedade alheia.
Finalmente, o vizinho mudou e derrubaram a velha mangueira. Fui esbulhada da minha bela vista.
Sinto falta da sombra farta e das estações marcados pelo seu compasso.
Hoje, a monotonia bicolor da minha janela é quebrada pela chegada de duas visitantes indesejadas.
Todos os dias à tarde.  Não pedem permissão para entrar. Não se preocupam se o proprietário está dormindo ou na hora do lanche. Entram fazendo aquele insuportável barulho, "buzzz...buzzz".
Tenho sérias dúvidas se o que mais me perturba é a sua presença ou a entrada triunfal e  ruidosa.
Odeio moscas! De qualquer espécie ou tamanho.  Pior se forem aquelas azuis-esverdeadas. Pois então, são exatamente estas que têm me importunado.            
Intriga-me a pontualidade. Todas as tardes, por volta de três horas, lá vêm elas, "buzzz...buzzz". Atravessam a janela, dão um "rolê", e saem pela porta do quarto.
Entendo isso como um tipo de provocação. E que outro nome poderia dar?
Ora, eu aqui parcialmente imobilizada, não tenho nenhuma condição de dar uma chinelada no bicho infeliz. E mesmo que tivesse, minha mira não é boa. Ou seja,  não represento nenhum risco para elas.
Sabe aquele medo natural que os animais sentem pelo homem?  Não.  Não existe nessa nossa, digamos,  “relação”.
Depois de tantas visitas, talvez elas imaginem que eu sou apenas um pelego em cima desta cama. Ou, quem sabe, já me confundam com o criado mudo.
Com esses pensamentos, lembrei de Kafka e sua Metamorfose.
Não que eu esteja me vendo como um grande inseto,  porém, depois de 30 dias de repouso, me vejo fazendo parte da mobília.
Estaria passando por um processo de "coisificação"?  Lukcás que o diga. Mas, não nego essa sensação de estar meio que “largada às moscas”.
Até que chegue o dia de colocar os pés no chão, prossigo no particípio.  No compasso do "buzzz...buzzz" das minhas visitantes.

Comentários

  1. Olá querida lindo blog ja estou seguindo. beijinhus da gabi
    http://blogandodemadrugada.blogspot.com/

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  2. Sei que as coisas andam difíceis, e deve estar te prejudicando na tua criatividade. Mas queria te dizer que continuas escrevendo muitíssimo bem. Aguardo ansioso pela próxima crônica. Ricardo Schwertner.

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