Cantinhos mágicos
Guardo na memória alguns cantinhos mágicos.
Ainda sonho, vez ou outra, com a velha casa de infância e com os dias que passei na casa da fazenda. Lugares que impregnaram minhas memória de boas lembranças.
Nasci e me criei na mesma rua, no mesmo endereço. A casa é que mudou, depois de ser reformada.
Ao fechar os olhos, ainda consigo percorrer os caminhos da casa velha. Relembro com nitidez a entrada da frente. O corredor cumprido que terminava na sala de jantar. A cozinha pequena de azulejos amarelos e piso negro. Dois degraus e um portão para chegar ao quintal. E o quartinho próximo ao abacateiro, cheio de bugigangas.
No fundo do quintal, tinha ainda um galinheiro vazio. Ali, eu e minha irmã, brincávamos de polícia e ladrão. E o galinheiro servia para trancar “o ladrão” na “cadeia”.
Havia, também, dois melancólicos pés de salso-chorão. Seus galhos pendentes eram perfeitos para brincar de Tarzan. Penduradas nos galhos, balançávamos de um lado para o outro, gritando, " Aaaahh, ah, ah, aaaaahhhh...".
Ao ficar embaixo deles, sentíamos gotinhas suaves, pingando aqui e ali. Era um choramingar silencioso e triste. Ironicamente, às vezes, eram deles que saíam as varas para corrigir as nossas travessuras. E para baixo deles retornávamos para chorar as mágoas.
O quintal era o nosso parque de diversões. Um mundo onde tudo era possível. Acreditávamos que ali poderíamos cavar um buraco e chegar ao Japão.
Eu e a Lílian passamos dias cavando e fazendo revezamento de pá. Quase que podíamos ver os habitantes do outro lado do mundo, com suas sombrinhas coloridas. Chegou um dia que o trabalho ficou árduo demais, e concluímos que iria demorar muito para terminar a empreitada. Abandonamos o projeto, deixando um buraco no meio da grama, que se transformou numa armadilha para o caseiro tropeçar.
Do quintal também saía nossa fonte de renda infantil. Colocávamos uma mesa em frente de casa e vendíamos abacates, laranjas, pitangas e tudo o mais que encontrássemos na despensa da cozinha. Com o resultado das vendas, íamos direto para o armazém da esquina comprar balas, pirulitos e rapaduras de leite.
Televisão era entretenimento para os dias chuvosos. Minha mãe sempre dizia que as crianças ficam inquietas em dias de chuva: "Essas gurias estão com bicho carpinteiro!". E ela tinha razão. Mesmo nesses dias era tarefa difícil nos segurar em casa.
Nos dias de chuva, fazíamos barquinhos de papel para largar na sarjeta. Corríamos rua abaixo para ver até onde eles iam. Voltávamos encharcadas. Pé por pé, íamos deixando um rastro molhado no corredor, enquanto a Dona Laura seguia atrás secando o chão para que a mãe não descobrisse nada.
Próximo dali existiam várias casas abandonadas. Em nossa imaginação criávamos personagens fictícios e antigos moradores. As histórias eram repletas de mistério, fantasmas e assassinos cruéis. De tanto repeti-las, acabávamos acreditando em nossas mentiras, a ponto de temer passar em frente àquelas casas sozinhas.
À noite sentávamos no muro da frente. Olhávamos para o céu, catando estrelas cadentes e pensando nos pedidos que faríamos assim que elas rasgassem a escuridão. Não era toda noite que elas davam o ar da graça. Mesmo assim, esperávamos pacientemente, até nosso pai perder a paciência e nos mandar entrar para dentro.
Muitas das minhas férias de verão passei na cada da fazenda, com o Tio José.
Adorava aqueles dias de peão. Ajudava a tirar o leite, buscar o rebanho e curar os animais feridos.
Várias vezes saí com meu Tio, ainda de madrugada, a cavalo para buscar o gado ou as ovelhas. À luz da lua, seguíamos campo afora, atravessando córregos e seguindo as trilhas deixadas pelo gado.
Voltávamos com o Sol alto, volteando os bois para que não escapassem da tropa.
Aquilo era o máximo. Não trocava um final de semana na fazenda por um mês inteiro à beira mar.
Boa parte desses dias eu gastava tentando me aproximar dos potros, ainda sem doma. Pedia para meu tio encilhar um cavalo e saía sozinha, em busca do potro solto no campo. Ao achá-lo, descia do cavalo e sentava um pouco distante.
Agachada, ia, pouco a pouco, me aproximando dele. Meio desconfiado, ele erguia a cabeça, olhando na minha direção, por baixo da crina que lhe caia sobre os olhos. Depois de muitas tardes e tentativas frustradas, resolvi pegá-lo pelo estômago. Sentei no capim, e mais uma vez fui me arrastando até ele, agora com um punhado de milho nas mãos.
Embora desconfiado, o pasto ralo e seco do verão, o estimulou a se achegar a minha mão. Aos pouquinhos ele foi se aproximando. Cheirou a ponta dos meus dedos e soprou um ar quente das narinas. Fiquei paralisada, com receio de que me mordesse. Mas, tendo chegado até ali, não iria dar para trás.
Ele, por sua vez, raspou uma das patas no chão, como quem diz: "Você não vai desistir?". Então, a fome falou mais alto. Num passo lento, ele encostou novamente na minha mão e lambeu todo o milho.
Desse modo, comprei a simpatia dele, com muito milho quebrado.
Nossa amizade durou muitos verões. Afinal, dizem, um cavalo nunca esquece de quem lhe tratou bem.
Na minha memória esses lugares ainda existem, tal qual naqueles dias. Posso sentir o cheiro da casa antiga. Relembro o calor da respiração do potro cheirando os meus cabelos. Essas lembranças contrastam o aconchego do lar da infância e, por outro lado, a adrenalina do desconhecido.
Hoje, passados tantos anos, esses lugares voltam a se encontrar, agora nos meus sonhos.
E é tão gostoso lembrar que quando acordo, aperto os olhos com força, pedindo para apertar a tecla "play", para continuar a sonhar.
Fonte imagem: http://weheartit.com/tag/cavalo
Seu texto me fez lembrar uma crônica de Contardo Calligaris comentando o filme "Paulinho da Viola: meu tempo é hoje": "Paulinho, ao contrário, repete que ele não tem saudade: o passado está dentro dele. As lembranças não servem para lamentar perdas ou para alimentar sonhos: são o patrimônio que enriquece a experiência que importa, a do presente". Fiquei com a impressão de que as lembranças tbm são vivenciadas assim no texto: como um doce que tempera o tempo de hoje. Adorei o texto! Parabéns!
ResponderExcluirSiloé,
ResponderExcluirTeu comentário me fez pensar nessa minha conflituosa relação com o tempo.
Obrigada pelo post.
Abs.
Lisandre.