Reunião de Condomínio
Prefiro as casas. Especialmente, porque não têm reuniões de condomínio.
Tenho uma fascinação por casas antigas. Pé direito alto. Banheiros de azulejo branco. Cozinha com azulejos até a metade das paredes e piso quadriculado em preto e branco. Se tiver um sótão, melhor ainda.
Sim, tem que ter um grande quintal. Com árvores para as crianças subirem. Com terra, para que terminem o dia com barro embaixo das unhas. Deveria ser um requisito obrigatório. Só estaria autorizado a dizer que teve infância quem brincou no barro. Quem sujou as mãos, unhas e roupas de barro.
Pela primeira vez, depois de casada, estamos residindo em uma casa. Em todas outras cidades moramos em apartamentos, com inconvenientes reuniões de condomínio, áreas comuns e regras de “não pode isso, não pode aquilo”.
Nossa casa é agradável e tem suas vantagens. Sobretudo, por estar ao lado do Fórum. Bastam uns poucos passos e já chego ao trabalho. Entretanto, sinto falta de um quintal de verdade. É, desses com grama, árvores, terra, horta etc. Temos um pseudo-quintal. Uns bambus, cactos, flores - tudo nos vasos e floreiras.
Durante a faculdade, morei em Santa Maria-RS, num apartamento. Gosto daquela cidade, mas tem um inconveniente clima. Muito frio e úmido no inverno. De fazer as paredes verterem àgua, sem nenhum exagero. No verão, pode-se dizer que se torna uma sucursal do inferno.
Os dias chuvosos e de vento norte, são igualmente memoráveis. Não tive um único guarda-chuva que sobreviveu à ventania doida.
Testei várias marcas e modelos. Nem mesmo um imenso, que lembrava muito um guarda-sol preto, resistiu. De repente, os raios do guarda-chuva viraram para cima, parecendo mais com uma tijela. Eu tentava, em vão, desvirá-los. Não demorou para que a cobertura começasse a se soltar, e os raios de alumínio despencassem, me espetando a cabeça. Morta de raiva, eu só queria jogar longe o maldito objeto. Completamente molhada, abandonei o guarda-chuva na primeira lixeira que passei.
Mas os valentes santamarienses persistem. Insistem, apesar das intempéries climáticas.
Daquele prédio ainda lembro as intermináveis reuniões de condomínio.
Viver em comunidade é um constante exercício de tolerância. Embora a reunião de condomínio tenha uma motivação democrática, não resta dúvida que seu principal objetivo é propiciar uma torrente de reclamações dos hábitos alheios. São discussões infindáveis, onde pouca coisa de relevante se decide.
Novata no pedaço, seguia o provérbio chinês e ficava só ouvindo. Depois de horas de ofensas mútuas, findava a reunião. Saía sem saber qual o tema decidido. De fato, a tônica da reunião de condomínio geralmente é reclamar, não solucionar. Pelo menos haveria o que discutir na próxima assembleia.
Depois de casada, voltei a morar em Santa Maria. Escolhemos um prédio pequeno, com poucos apartamentos. O clima era caloroso, com pessoas simpáticas e solidárias. Como haviam poucos moradores, nos relacionávamos com quase todos.
Um novo morador era assunto para muitos dias. "De onde vinha? ". "Teria filhos ou bichos?". E a especulação prosseguia.
Uma nova vizinha comprou o apartamento do último andar. Todas as manhãs ouvíamos o "pec-pec" dos seus saltos, descendo a escada. Deixava um rastro intenso de perfume no corredor. Sempre impecável no vestir. Até sabia usar roupas brancas. Caminhava como se tivesse nascido em cima do salto. Têm mulheres que possuem essa elegância natural. Uma coisa intrínseca. Sem esforço ou afetação.
Nosso apartamento tinha os cômodos pequenos, mas suficientes para acomodar nossa pouca mobília. Era bem ensolarado e acolhedor. E, o melhor, com uma bela churrasqueira na sacada.
Ao entardecer, a vizinhança se juntava para tomar chimarrão. Reunião informal do condomínio. Ao contrário das outras, não havia queixas e reclamações. Uns levavam bolos, biscoitos e rapaduras. Não faltavam as piadas e o imperdível informativo semanal. Há sempre ouvidos ávidos por uma boa fofoca.
Certa noite aconteceu uma festa barulhenta na casa da esquina. Os vidros do prédio retumbavam ao som do "tush, tush". O barulho nas alturas não deixava ninguém dormir.
O problema é que uma família vizinha estava às voltas com uma criança com câncer, em estado terminal.
Às quatro horas da madrugada, a maioria dos moradores desceu para reclamar. Reunião de condomínio extraordinária.
A polícia foi chamada e a confusão, obviamente, se armou.
Eu e minha vizinha, ambas de pijamas e pantufas, fazíamos coro contra o som alto. No meu caso, pantufas verdes, modelo de sapo. Despojando a elegância de quem foi acordada de sobressalto na madrugada, me pus a discutir com os policiais, arrazoando que, o som naquele volume em área residencial, violava o Código de Posturas Municipais.
Meu marido ficava ao meu lado, visivelmente constrangido. Contudo, diante de uma causa nobre, jamais desertaria do meu posto de porta-voz do prédio.
Depois de muita discussão e registro do B.O, chegamos a um consenso e voltamos, cada qual para seus apartamentos. Fim de reunião.
No dia seguinte, o nosso vizinho chega para o meu marido e comenta, com ar de deboche: "Baahh! Tchê, quem eram aquelas gurias de minissaia que vieram te convidar pra festa, enquanto tua mulher discutia de "pan-tu-fas" com os brigadianos?". O Ricardo deu aquele sorriso amarelo e desconversou: "Ah, aquelas? Eram só umas conhecidas do tempo da faculdade".
Na defesa da causa alheia, acabei deixando de proteger a retaguarda do meu "território". Se bem que, de pantufas de sapo e pijama, eu estaria em inequívoca desvantagem.
Guardo com carinho a lembrança daquele prédio, dos vizinhos e nossas reuniões de condomínio
No dia em que mudamos, olhei para os cômodos vazios e senti um aperto no coração. Meus passos no piso de madeira ecoavam nas paredes vazias.
Um misto de nostalgia e medo tomou conta de mim. Medo das mudanças. Dos desafios que teria pela frente.
Suspirei fundo e, numa última olhada, fechei a porta atrás de mim.
Saí como quem acaba de ser despejado. E nunca mais as reuniões de condomínio foram tão divertidas.
Fonte da imagem: Getty images
Incrível a precisão da descrição do que é viver em Santa maria! Com direito a brigadianos e vento norte! Parabéns pela leveza do seu texto.
ResponderExcluirAdorei sua forma contagiante e nostalgica de escrever, seus temas refletem mais a sua alma do que o objeto a que esta relatando. O por do Sol é um fenomeno cotidiano, porem de uma energia pouco apreciada e entendida, qdo soubermos dar o real valor a td que a Natureza nos proporciona então estaremos sendo dignos de uusufrui-la. Paz e Luz wilson
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