"Síndrome do braço curto"- A distância mínima necessária
Preciso de uma distância mínima. Não consigo ver de muito perto.
Não, não é isso. Não estou padecendo da "síndrome do braço curto". Talvez, em breve a hipermetropia me alcance. Ainda não.
Mas, não nego que para enxergar necessito de no mínimo dois palmos diante dos meus olhos.
As crianças têm essa mania. Ao longe gritam: " Olha que legal!". Respondo: "Assim eu não vejo nada, está muito longe". Fico fazendo "zoinho", num esforço para enxergar as figuras. Esquecem que sou míope.
A seguir, "grudam" o livro no meu rosto e dizem: " Aqui, olha!". Desta vez, quase me deixam vesga e tudo fica embaralhado. Explico que agora está perto demais. Impacientes, não compreendem que entre esses dois extremos existe o meio-termo da minha visão, os dois palmos.
Se só acontece comigo, eu não sei. Entretanto, de fato, prefiro olhar as coisas à certa distância.
Com onze anos minha mãe me matriculou numa escola de pintura a óleo. Seria a segunda tentativa para que a filha tivesse algum dom artístico.
A primeira, foi aos sete anos com as aulas de piano. Não passei do livro " Duas mãozinhas no teclado", de Mário Mascarenhas. Em parte, porque minhas mãozinhas já não suportavam os dedões da professora me batendo. Toda vez que eu espalmava as mãos no teclado, ela me acertava um tapa, por esquecer de deixá-las na posição correta. Abandonei a banqueta, sem relatar para minha mãe a heterodoxa metodologia de ensino da professora.
Então, fui para a pintura. A professora Ivani dizia que devíamos nos afastar um pouco, para vislumbrar a beleza de uma tela a óleo. No óleo sobre tela, aprendi a olhar.
À distância, podia perceber detalhes antes não vistos. Os efeitos de luz e sombra imprimiam contornos e profundidade.
O óleo "As Meninas", de Diego Velasquez, ensina essa lição.
Analisando a tela, observa-se o pintor se afastando para contemplá-la. As meninas e suas damas por ali. E, ao fundo, o reflexo do Rei e da Rainha no espelho. Certamente, Velasquez deveria tomar o mesmo ponto de vista. Aquela distância indispensável.
O pintor é sempre um sábio. Pintura é “cosa mentale”, já disse Leonardo da Vinci. Ele antevê em seu espírito o que será concebido. Eis o olhar criativo.
Existem distintos olhares. O psicanalista Antonio Quinet, em “Um olhar a mais” (Ed. Jorge Zahar), percorre por esses vários olhares, mencionando o simples olhar físico, a pulsão escópica, o olhar-saber (Le Savoir), dentre outros. Refere, igualmente, o olhar-objeto. Aquele em que o sujeito é ao mesmo tempo, ator e espectador.
De todos os meus sentidos, prezo a visão. Nas ruas, nas praças, em todo canto. Há sempre um quadro, uma cena a ser admirada.
Num restaurante, deleito-me observando as pessoas comendo ou bebendo. Por acaso, já se viu maior espontaneidade? É o melhor momento de fotografá-las. Adultos descontraídos, comem e riem, sem se preocupar com as mesas ao lado. Descuidam-se de si mesmos. Relaxam. Deixam despencar as máscaras e camadas.
Sim, enxergar além da primeira camada. Descascar a cebola. Porque é nas camadas mais profundas que se escondem os sentimentos.
Tem gente infeliz, deprimida, sem esperança. Seus corpos falam. Seu caminhar denuncia. O rosto disfarça. No entanto, os gestos revelam o que se tenta esconder.
Mesmo no ambiente familiar, há pessoas que não se veem. Se esbarram, porém não percebem o que está bem debaixo dos seus olhos. Talvez precisem daquela distância mínima.
Não percebem a infelicidade do cônjuge. Nem enxergam que os filhos cresceram. Fazem vistas grossas para suas novas escolhas, nem sempre de acordo com seus paradigmas preestabelecidos.
Assim dá menos trabalho. Melhor varrer o problema para debaixo do tapete do que ter que mexer na ferida.
Édipo ao saber, preferiu a cegueira. Impactado pelo olhar-saber, furou os próprios olhos.
Confesso que também tenho dias de cegueira. Cega por não querer ver. Não querer saber. Contudo, esforço-me para olhar, tentando superar minhas deficiências.
Em giz pastel desenhei minha filha ainda bebê. Sua imagem está gravada em mim e no papel canson. A delicadeza eternizada em papel.
Hoje, adolescente, ela estranha quando fico a lhe olhar. Talvez pense que é um “mau-olhar”. Quem sabe até seja. “Mau-olhado” no bom sentido da palavra. Assim entendido como um olhar ávido pelo Outro. Desejo de reter na memória o que me escapa. Tempo que escorre pelos dedos.
Entendo que o olhar, às vezes, pode ser realmente perturbador.
Outro dia o Ricardo me pegou a olhar fixamente para ele. Como se eu fosse um tipo de Medusa, cheia de olhos intrigantes, me perguntou incomodado:
"O que foi?"
"Nada."
"O que? Já está me analisando?".
" Não. Só te olhando."
Será que ele ainda não entendeu o quanto gosto de olhá-lo?
Por vezes, vejo-o ao longe. "Como pode ser tão bonito?". Sou suspeita para falar. Contudo, admira-me o fato de que o acréscimo de uns fios grisalhos nas têmporas só o deixaram ainda mais bonito.
Mesmo antes de conhecê-lo, o observava ao longe.
Era época de faculdade e eu sempre passava por ele, em frente a uma parada de ônibus. Lamentava não precisar pegar o ônibus, pois o Curso de Direito ficava no centro da cidade.
Imaginava que, de repente, quem sabe, eu desse sorte e sobrasse um banco vazio ao lado dele. E a partir dali, a possibilidade de uma conversa.
Certo dia, nos encontramos na casa de uma amiga. Fiquei meio sem jeito. Não sabia o que fazer com as mãos. Então, fiquei daquele jeito, num “cruza e descruza” de braços. Nessas horas, um bolso sempre cai bem.
Logo pensei que o cara deveria se achar o "tal". Então, demonstrei pouco caso. Naquele dia, evitei o olhar.
Agora tiro proveito. Já esperei que ele estivesse dormindo e desenhei o seu perfil com carvão. Perfeita simetria.
Meu pequeno saiu muito semelhante ao pai. O franzir da testa. Os olhos expressivos. Faz carinha de tímido quando olho para ele.
Tomo tempo vendo-o dormir. O ressonar suave. A chupeta quase a cair da boca.
É difícil ver a beleza sem querer tocá-la. Daí quero sair da abstração. Concretizá-la com o toque dos meus dedos.
Nesses momentos, dispenso a distância mínima. Fecho os olhos e, de leve, beijo sua testa. E falo baixinho: "Dorme meu filho. Dorme...".
Só o beijo dispensa qualquer olhar. De olhos fechados, basta sentir.
Fonte imagen: http://www.artchive.com
Comentários
Postar um comentário
Deixe o seu comentário.