Amor Platônico

Há quatro anos esperava pelo momento.


Durante esse tempo, passei pelo local de carro, geralmente na volta para casa. Olhava pelo retrovisor e  lá estava “ele”. Lindo. Perfeito.


É difícil explicar. Eu, de longe, só admirando. “Ele” lá, distante.  Alheio a minha existência. Amor platônico.


Depois que “ele” se ia, meu mundo perdia o colorido. Fazia-se escuridão em mim. Mundo em cores gris.


Seguia viagem, na esperança de que pudéssemos nos encontrar novamente.


Para ser sincera, achei que o momento nunca chegaria.


A vida vinha sendo uma corrida maluca. Se pensar bem, nos últimos meses, não me lembro de caminhar. Lembro de correr, correr... e correr.  Dias que passam voando.   


Depois que caí, entendi o que é caminhar. Ou melhor,  o que é não poder caminhar. Tenho “andado” mancando. Um passo aqui, outro ali. Devagarinho. E rio de mim mesma.


Ah, que ironia! Eu que antes só vivia correndo... Um tropeço pode mudar radicalmente nossa vida. 


Ao cair aprendi a contemplar.  Eu sei. Toma tempo.  Contudo quero esse tempo pra mim. Quero parar.  Me deixar seduzir pelo que está ali, bem diante dos meus olhos.


Talvez o amor pela fotografia já estivesse aperfeiçoando o meu olhar.


Por vezes vejo uma cena e quero guardá-la. Retê-la na retina. Quero a câmera na mão. O “click” no momento exato. Porém, nem sempre é possível.


Fotografia é contemplação. É deixar-se apaixonar pelos momentos fugazes.  Encantamento puro.


A princípio, rejeitei a paisagem do Cerrado.


Essa vegetação sem harmonia, torta e retorcida não me conquistou no primeiro olhar. Nem no segundo.


Desculpem-me quem pensa o contrário. Guimarães Rosa que me perdoe. A impressão que tenho é que as árvores nascem e crescem aos gritos, em gemidos e dor. Parto sem analgesia.


Quem se dá ao luxo de pisar no mato é que consegue ver a beleza do Cerrado. Chegar bem pertinho. Somente assim,  o seu esplendor se descortina.


Confesso, que nos primeiros anos não via nenhuma beleza nos dias áridos do Cerrado.  Ansiava pela chuva.  Cheiro de terra molhada. Grama verde no quintal.


Míope, eu só enxergava as montanhas de processos que vinham para eu julgar.   


No entanto, o tempo foi passando e aprendi a ver as coisas de uma forma diferente. O cenário, embora agreste, me cativou. Foi amor à terceira ou quarta vista.


Bem, mas eu estava falando “dele”. 


Lembro que era a época mais seca do ano quando percebi a “sua” presença naquele lugar.  
Há meses não chovia. Árvores retorcidas. Capim completamente seco. O gado esquelético, pastava, sei lá o quê.


Ao cair da tarde de um domingo, voltávamos de Brasília.  Um movimento doido na estrada me deixava um pouco apreensiva. Deixei o livro de lado e olhei pelo retrovisor.  E lá estava “ele”.


Como poderia haver algo tão encantador? Sim, foi um amor à primeira vista.


Não quis falar nada para o Ricardo. Se eu pedisse para pararmos,  certamente não entenderia. Não consegui pensar num pretexto. Então, abandonei a ideia. Quem sabe, na próxima viagem “o” visse novamente.


De fato, foram vários encontros depois daquele primeiro. Sempre na mesma época do ano.


Um dia tomei coragem e confessei meu desejo.  Ao contrário do que imaginava, meu marido compreendeu. Talvez até suspeitasse de alguma coisa, pois meus olhares há muito tempo me denunciavam


Ricardo me conhece muito bem. Não teria argumentos para me fazer desistir. Lutar contra uma ideia fixa.  Sem chance. Daí pra frente, em todas as viagens que passávamos pelo local,  ele mesmo tomava a iniciativa.  Cheguei a pensar que estivesse me testando. Tanta solicitude, me fez desconfiar de sua real intenção.  


Com desalento, deixava passar a oportunidade.  Pensava nas crianças e desistia. Fazê-las passar por isso,  um mero capricho. Não. De modo algum. E quando estávamos só os dois, também não tinha coragem.  Havia sempre outras prioridades.  


Ontem na viagem, o Ricardo me flagrou olhando no retrovisor. Calmamente me perguntou: “Quer descer para esperá-“lo”?”. “Se você não se importar...” - respondi.


Estacionou o carro e disse para não me preocupar, que poderia ficar o tempo que fosse preciso.


Do alto de uma colina avistávamos terras de lavoura que se estendem até o horizonte.  Na época de seca geralmente só vemos o restolho. Tudo amarelo e seco. E em meio a lavoura, a silhueta de uma solitária árvore seca e retorcida contrastando com um sol imenso e alaranjado.


Queria muito registrar o momento. Vai chuva, vem chuva,  e não tomava tempo para parar na estrada e preparar a câmera para o “pôr-do-sol" perfeito.


Sempre  viajamos com um rumo certo.  Local e horário para chegar e retornar. Não saímos a esmo.


Fotografá-“lo” exigiria uma soma de circunstâncias coincidentes:  primeiro, a estação seca; segundo, um dia de poucas nuvens; terceiro,  estar no local na hora exata em que o sol toca a terra, o que dura pouquíssimos minutos.  Ou seja, é preciso estar no local certo,  esperando pelo momento exato.


Ontem, nos encontramos.  Eu com a máquina em punho. Dessa vez,  não “o” deixaria escapar novamente. 



Com receio de perder o momento,   fui “clicando” o seu caminhar. Com inefável suavidade, vi o sol encostando sua borda inferior na linha do horizonte. Parecia um beijo. Talvez de despedida. Sem apressar o passo, prosseguiu seu percurso.


Mais uma vez, fez-se escuridão. Mas,  não me perturbou. Não trouxe seus fantasmas, nem os medos que nos acorrentam. Levava comigo um pôr-do-sol perfeito.
Prosseguimos a viagem. Silenciosos, ouvíamos no carro a música “Don’t you remember” (“Você não se lembra”) de Adele. Na última estrofe,  ela pergunta: “When will I see you again?”( “Quando vou vê-lo novamente?”).


Olhei para o Ricardo e agradeci por ser tão sensível aos meus desejos e necessidades. Ele sabia o quanto eu queria aquela foto.  Aquele pôr-do-sol. E esteve ao meu lado, curtindo comigo aqueles minutinhos de espera.


Se “o” verei novamente? Não sei.  Talvez Deus nos reserve outras estradas. Outros caminhos... Mas, viesse a noite ou a chuva, já podíamos seguir em frente.
 







Comentários

  1. Foi um momento inesquecível esperar o por do sol contigo, principalmente depois de um final de semana tão bom como foi o nosso. Muito boa tua crônica. Espero que logo estejam dentro de um livro. Parabéns. Ricardo Schwertner.

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  2. Que hajam sempre estes momentos em tua VIDA, pois assim teremos belas e delicadas descrições desses momentos.
    Lindo...


    Realmente a vida corre! Passa voando, como você mesma disse, mas nestas corridas pode ter certeza que acha-se instantes de serenidade e sensibilidade!
    Abraços

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  3. Ricardo,

    Tu tens sido o companheiro de todas as horas. Boas, ruins, engraçadas ou tristes. Deus tem sido muito bom comigo, por ter te colocado no meu caminho. Te amo. Bjs.

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  4. Malu,

    Obrigada, mais uma vez, pelo teu post. Em todos os momentos, lugares e cantinhos deste mundo - agora mesmo - estão acontecendo espetáculos. A verdade é que nós é que não paramos para contemplá-los ou percebê-los.
    Grande abraço,

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